O vício em compreender: por que alguns sujeitos precisam entender tudo para não sentir nada
Há inteligências que funcionam como muralhas. Gente que pensa rápido, articula bem, nomeia emoções com precisão e reconhece padrões antes mesmo de vivê-los. São os analistas espontâneos da própria vida. Interpretam tudo: o gesto do outro, a origem da própria angústia, a lógica do fracasso amoroso, os sintomas alheios. Nada escapa ao crivo da razão. Mas o que parece lucidez, muitas vezes, é apenas defesa. Um modo sofisticado de não sentir.
Freud já advertia: compreender não é o mesmo que elaborar. É possível entender perfeitamente o funcionamento de um sintoma e continuar preso a ele. O saber, nesse caso, vira barreira. Um modo de evitar o recalque, mas também de contornar o afeto. O sujeito se protege com conceitos. Explica para não entrar em contato. Cria uma narrativa coerente sobre a própria dor — e com isso neutraliza sua potência transformadora.
Lacan tensiona ainda mais essa dinâmica. Para ele, o saber inconsciente não é transparente. Não basta interpretar. É preciso se implicar. O que o sujeito recusa não é o sentido, mas o desejo que o atravessa. E há formas de interpretação que funcionam como anestesia: mantêm o sujeito girando ao redor do próprio vazio, dizendo coisas brilhantes, mas sem mover nada. O discurso vira cortina. A verdade se perde no excesso de lucidez.
Na clínica, essa defesa aparece com frequência em sujeitos muito inteligentes, letrados, cínicos ou autoirônicos. Gente que antecipa a fala do analista, ironiza a própria dor, ridiculariza suas repetições. Dão nome a tudo — menos à própria covardia. Porque sentir de verdade exige risco. Exige desmontar-se. Exige suportar a irracionalidade do afeto, o escândalo do desejo, a fragilidade do laço. E para alguns, isso é insuportável.
A inteligência defensiva é especialmente eficaz porque é socialmente valorizada. O mundo celebra quem tem consciência, quem é lúcido, quem tem "inteligência emocional". Mas nem toda consciência é coragem. Muitas vezes, é paralisia disfarçada de clareza. Saber demais pode ser uma forma de não saber o essencial: o que se sente. O que se deseja. O que ainda dói, apesar de todos os livros lidos e todas as análises feitas.
Algumas perguntas que desmontam esse impasse:
– O que está sendo evitado ao compreender tão bem?
– Que afeto não pode ser sentido, sob pena de desorganizar tudo?
– A lucidez está a serviço de quê — ou de quem?
– Qual dor permanece intacta apesar de toda a interpretação?
– É possível não entender — e ainda assim existir?
Às vezes, a travessia exige justamente isso: abrir mão da compreensão. Permitir-se a confusão, o erro, o choro sem legenda. Habitar o afeto sem mediá-lo o tempo todo. Porque sentir não é fracassar intelectualmente — é existir com o corpo inteiro. E só se atravessa o sintoma quando se desiste de domesticá-lo com linguagem.
Há um tempo em que o sujeito precisa calar a própria inteligência para escutar o que ainda pulsa. Um tempo em que não é mais possível se proteger com análises brilhantes. Um tempo em que a pergunta mais honesta não é "o que isso significa?" — mas "por que ainda dói?". E nesse instante, talvez pela primeira vez, o saber cede espaço ao sujeito.
E é nesse vazio — incerto, confuso, não narrado — que algo novo finalmente pode nascer.