O trauma da paz: por que alguns sujeitos só funcionam no caos
Há quem só se sinta vivo quando algo está errado. Quando há tensão no ar, conflito à espreita, uma bomba emocional prestes a explodir. Quando tudo parece calmo, esses sujeitos se inquietam. Desconfiam. Buscam pelo erro oculto. Criam atritos onde não há. Iniciam discussões, sabotam a própria estabilidade, rompem com o que funciona. Porque há um tipo de sofrimento que organiza. E há uma paz que desestrutura.
Freud já havia indicado que o sujeito neurótico não busca exatamente a felicidade — busca repetir. E o que se repete é o trauma. Não o trauma como evento, mas como estrutura de experiência: uma forma específica de se afetar, de se vincular, de existir no mundo. Se o caos marcou o início da vida emocional — conflitos parentais, instabilidade, afeto imprevisível — então é no caos que o sujeito se sente em casa. A paz não é desejável: é insuportável.
Lacan articula isso como gozo: uma satisfação paradoxal que se dá mesmo (e especialmente) na dor. O gozo do caos é mais do que masoquismo — é um modo inconsciente de garantir que o outro esteja presente. Afinal, em muitos contextos familiares, o único momento em que alguém prestava atenção era no meio do escândalo. No silêncio, havia abandono. No afeto tranquilo, havia ausência simbólica. O caos virou senha de amor.
Na clínica, esse padrão aparece em relações cíclicas: o sujeito se aproxima, tudo vai bem, e então algo desanda. Há uma provocação, uma acusação, um distanciamento súbito. E depois, reconciliação. Um novo ciclo começa. Quando se pergunta por que isso acontece, o sujeito não sabe responder — mas se sente vivo nesse movimento. O afeto calmo parece falso. A estabilidade parece entorpecente. O desejo, para existir, precisa da fricção.
Essa dinâmica também aparece fora dos laços íntimos. No trabalho, no cotidiano, na relação com o próprio corpo. A vida precisa ter tensão. Uma crise a resolver, um projeto a salvar, uma tragédia para justificar a ansiedade. Quando tudo se estabiliza, surge o tédio. E o tédio, longe de ser inércia, é o prenúncio do colapso: ou algo acontece, ou o sujeito implode. Melhor a dor conhecida do que o vazio indecifrável da paz.
Mas o que está em jogo, na verdade, é a dificuldade de sustentar a própria existência sem o outro como ameaça ou problema. O sujeito não sabe o que fazer com o próprio desejo quando ele não precisa lutar por ele. Como diz Winnicott, há aqueles que nunca chegaram a existir de forma espontânea — apenas reagem. E o caos é o cenário perfeito para continuar reagindo, sem nunca se construir.
Algumas interrogações para romper esse circuito:
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