O medo de ser feliz: quando tudo vai bem e o sujeito sabota para voltar a doer
Tudo está fluindo. A vida, enfim, começa a parecer leve. O relacionamento é estável, o trabalho rende, o corpo responde bem. Não há grandes conflitos. E ainda assim, algo se inquieta. Uma voz sutil, quase imperceptível, começa a sussurrar: “Isso não vai durar.” “Tem algo errado.” “Você não merece tanto.” O sujeito começa a tensionar onde não há tensão, a duvidar do que é bom, a provocar pequenas rachaduras — até que tudo desmorona. E só então ele respira. Porque o sofrimento, ali, é mais familiar do que a paz.
Esse mecanismo é mais comum do que parece. Freud chamou de compulsão à repetição; Lacan, de gozo: esse prazer estranho que se extrai da própria ferida. Não se trata de gostar de sofrer, mas de sofrer do único jeito que se sabe. A dor, nesse contexto, não é um acidente — é a gramática do sujeito. A felicidade, ao contrário, soa como língua estrangeira. E tudo que é estrangeiro, assusta.
Na clínica, é frequente ver pessoas que sabotam conquistas no exato momento em que poderiam se sentir realizadas. Começam a criar conflitos onde não há, a romper vínculos por detalhes, a rejeitar oportunidades com desculpas elaboradas. O que está em jogo não é só medo — é identidade. “Quem serei eu se não estiver mais lutando?” “O que vai restar se eu parar de tentar consertar tudo?” Para muitos, o sofrimento é a única forma conhecida de existir.
A felicidade, ao contrário do que o discurso social promete, não é simples. Ela exige uma reestruturação subjetiva profunda. Estar bem implica renunciar à narrativa heroica do sobrevivente, do injustiçado, do forte que aguenta tudo. Implica suportar o amor sem dívida, o sucesso sem punição, o prazer sem culpa. E isso, para quem foi moldado na lógica da escassez emocional, soa quase obsceno.
Nietzsche advertia: “Temos a arte para não morrer da verdade.” Mas há quem precise da dor para não morrer do vazio. Quando o sofrimento se torna matéria-prima da identidade, a felicidade aparece como uma ameaça de dissolução. O sujeito teme que, sem dor, sem drama, sem escassez, não haja mais ele. Como se o eu estivesse tão colado à falta que qualquer abundância parecesse exílio.
Como não destruir o que começa a dar certo
Continue a ler com uma experiência gratuita de 7 dias
Subscreva a Para não enlouquecer para continuar a ler este post e obtenha 7 dias de acesso gratuito ao arquivo completo de posts.