Para não enlouquecer

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O corpo que paga a conta do que a psique não soube nomear

O corpo que paga a conta do que a psique não soube nomear

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Torresmo
jun 07, 2025
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O corpo que paga a conta do que a psique não soube nomear
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Há dores que não têm nome, mas têm horário. Dores que aparecem sempre aos domingos, ou depois de uma ligação não feita, ou quando o silêncio do outro dura mais do que o permitido pela fantasia. Dores que falam no corpo o que não conseguimos escutar em pensamento. São cólicas sem causa, apertos no peito com ECG normal, enxaquecas que se repetem como rituais, gastrites que explodem sempre no mesmo dia do mês. E, ainda assim, insistimos em chamá-las de “nada”, “coisa boba”, “stress”.

Neste ensaio, vamos tratar do corpo como lugar onde a alma cobra suas dívidas. O corpo como depósito involuntário dos conflitos não metabolizados, dos lutos não chorados, das palavras engolidas. O corpo como arquivo vivo das histórias que a consciência não quis (ou não pôde) organizar. Porque há um tipo de sofrimento que, quando não encontra escuta, escava caminho pela carne.

A medicina — ao menos aquela que se pretende científica — raramente se curva ao simbólico. Prefere a lógica da lesão à lógica da falta. Mas a clínica psicanalítica insiste: o corpo fala. E fala porque foi silenciado antes. Fala porque o sujeito se perdeu no labirinto do não-dito. Fala porque o gozo, conceito central da teoria lacaniana, não é apenas prazer — é excesso, é o ponto em que o prazer vira dor, em que o desejo vira sintoma, em que o afeto vira inflamação.

Para Freud, o sintoma histérico já era, desde os Estudos sobre a Histeria (1895), um discurso cifrado, uma espécie de metáfora corporal de um conflito psíquico não resolvido. Mas Lacan, décadas depois, aprofundaria essa concepção: o corpo, para além da biologia, é também um corpo falado — um corpo estruturado pela linguagem, afetado pelo desejo do Outro, moldado pelo significante. O que isso quer dizer? Que não é o corpo que adoece “sozinho”. É o sujeito que não suportou simbolizar algo — e isso retorna no real.

Podemos pensar no corpo como uma terceira instância entre o simbólico e o real. Ele é, ao mesmo tempo, testemunha e protesto. Testemunha daquilo que aconteceu e não foi dito. Protesto contra aquilo que continua acontecendo e não pode ser nomeado. Assim, o corpo carrega aquilo que a linguagem não deu conta de carregar. Um abuso nunca contado. Uma angústia que não soube virar choro. Um desejo calado por anos a fio.

Não é à toa que muitos processos de adoecimento crônico coincidem com rupturas afetivas. O luto que não teve tempo de acontecer. A separação que foi empurrada com racionalizações. A demissão que não pôde ser sentida como perda de identidade. Quando a subjetividade não encontra recursos simbólicos para sustentar a dor, o corpo assume a função de tradutor — um tradutor desesperado, que grita em língua própria.

Por isso, há um tipo específico de paciente que chega ao consultório psicanalítico depois de peregrinar por dezenas de especialistas. Cardiologistas, reumatologistas, endocrinologistas, neurologistas. Todos os exames normais. Nenhuma causa visível. “Talvez seja emocional”, alguém sugere, quase como quem pede desculpas. Mas não é “emocional” no sentido simplista. É estrutural. É subjetivo. É simbólico.

A cultura contemporânea, obcecada por produtividade e positivismo, reforça a cisão corpo-mente com uma ferocidade anestésica. Quando uma pessoa diz que está mal, a primeira reação é farmacológica. Tranquilizantes, ansiolíticos, neuromoduladores. São válidos. São necessários. Mas, sozinhos, não simbolizam nada. Eles silenciam o corpo — mas não resolvem a causa do grito. E se o sintoma é linguagem, silenciar o corpo sem escutar a mensagem é como arrancar a campainha de uma casa em chamas.

Importa, portanto, cultivar uma escuta que vá além da literalidade médica. Uma escuta que considere que as doenças podem ser também narrativas interrompidas. Que o adoecimento pode ser um pedido de tradução. Que o corpo, em sua insistência sintomática, talvez esteja apenas esperando que alguém escute o que ele tenta dizer há anos — sem palavras.


Como transformar a dor corporal em linguagem simbólica?

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