A bondade que exige aplauso: quando o cuidado serve mais a quem cuida do que a quem sofre
Há gestos de ternura que doem mais do que o abandono. A mão que alisa o cabelo machucado com um orgulho surdo, a escuta que se oferece como troféu por tudo que suportou calada, o amor que se entrega em excesso como recibo de uma dívida nunca contraída. São formas de cuidado que não cuidam — performances de generosidade que operam como escudos narcísicos, exigindo retorno emocional como se o afeto fosse uma moeda, e não uma presença.
Nesse teatro relacional, o outro vira platéia. O sofrimento do próximo é o palco sobre o qual se encena a própria moral elevada, a própria luz. Há quem chore por você, mas esperando que você enxugue as lágrimas dele. Quem diga “eu só quero te ajudar” com olhos que exigem redenção. E quem, incapaz de lidar com sua própria vulnerabilidade, invista no sofrimento alheio como matéria-prima de sentido — uma espécie de vício disfarçado de empatia.
A armadilha é sutil. Não se trata de uma maldade explícita, mas de um desvio simbólico. Um deslocamento no eixo do desejo: em vez de amar o outro, ama-se a ideia de ser aquele que ama. O foco não está no acolhido, mas na identidade do acolhedor. Em termos lacanianos, é o sujeito que faz do cuidado um significante de completude, uma tentativa de tapar o buraco do próprio gozo através da função salvífica.
Há algo de perverso nisso — não no sentido vulgar, mas no rigor estrutural do termo. O perverso, para a psicanálise, não é necessariamente o cruel. É aquele que se posiciona como o instrumento da lei, o vetor do bem, o dono do código. Ele conhece o desejo do outro antes mesmo que o outro possa enunciar. E nesse movimento, usurpa-lhe a falta, recobrindo-a com sua oferta. O perverso cuida para não precisar se cuidar. Oferece colo para não precisar de um. E quando o outro, enfim, melhora, sente-se traído — como se a cura do outro invalidasse sua existência.
É aqui que a lógica do aplauso se revela. Aquele que cuida por necessidade narcísica não suporta o silêncio da gratidão. Ele precisa ser visto. Precisa que o outro adoeça um pouco mais, só para confirmar sua utilidade. O sofrimento do outro é o terreno onde germina sua importância. E isso é um problema ético.
O vínculo estabelecido a partir desse lugar é, no fundo, uma forma de domínio. O afeto vira dívida. A ajuda se transforma em chantagem implícita. "Depois de tudo que eu fiz por você..." — essa frase deveria ser o alarme de incêndio de qualquer relação. Ela denuncia que o gesto não foi gratuito, nem mesmo altruísta. Foi uma negociação simbólica travestida de amor.
No entanto, não há vilões claros nesse enredo. Muitas vezes, quem cuida assim também foi cuidado desse modo. Carrega no corpo uma memória de afeto condicionado, onde ser amado implicava atender expectativas, compensar ausências, merecer o carinho que deveria ter sido incondicional. Esses sujeitos aprenderam que só teriam valor se fossem úteis. Tornaram-se indispensáveis para não desaparecer. E agora, adultos, continuam repetindo esse script, na esperança de finalmente serem vistos — mas sem jamais se deixar ver.
Esse é o ponto cego da bondade performativa: ela impede o verdadeiro encontro. Pois onde há expectativa de aplauso, não há espaço para a verdade do outro. O sofrimento não pode ser ouvido em sua inteireza se já vem carregado do dever de agradecer. A dor não pode ser partilhada se precisa render afeto em troca. E, sobretudo, o sujeito não pode se libertar se percebe que sua melhora desmorona o mundo de quem o acolhe.
Como reconhecer esse padrão (e interrompê-lo):
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